Lançado nos Estados Unidos no final de 2009, o último livro de João Magueijo chega agora às livrarias em português. O Grande Inquisidor é a história do físico português à procura do físico italiano Ettore Majorana, génio atormentado da era nuclear que um dia, em 1938, aos 31 anos, desapareceu sem deixar rasto.
Físico teórico no Imperial College, em Londres, João Magueijo viu o seu nome em jornais e televisões de todo o mundo depois de ter publicado, em 1999, um artigo que punha em causa o postulado de que a velocidade da luz é constante. Einstein pode ter-se enganado, quando fez assentar a teoria da relatividade na constância da velocidade da luz, disse o físico português, de 44 anos. No seu primeiro livro de divulgação científica, Mais Rápido do que a Luz (2003), relata a saga e os conflitos que teve até conseguir publicar o primeiro artigo sobre a teoria da velocidade variável da luz, que desenvolveu para tentar explicar certos enigmas do início do Universo. O pretexto para esta conversa com João Magueijo, cheia de boa disposição, foi o seu segundo livro, agora lançado em português. É sobre o físico teórico Ettore Majorana, cujo nome ficou associado ao neutrino, uma partícula que, por coincidência, voltou há semanas a dar dor de cabeça aos cientistas, confrontados com a possibilidade de a sua velocidade poder ultrapassar a da luz.
- Logo no início do seu livro diz que Ettore Majorana o fascina desde os 20 e poucos anos. O que o atraiu tanto?
- Quando ouvi falar dele pela primeira vez, foi o mais óbvio: o mistério do desaparecimento. Uma pessoa que um dia diz que está farta de tudo e se vai embora. Mas, ao longo dos anos, comecei a interessar-me mais pelos problemas da relação entre cientistas, pelos efeitos morais das descobertas científicas. Estamos a falar da era nuclear e das implicações que teve na II Guerra Mundial. A história humana dele também se tornou mais importante. O que acontece quando uma pessoa é um génio? Era um visionário, só agora estão a ser verificadas as construções matemáticas que fez. Mas há ali um desequilíbrio. No caso dele, ainda é pior, porque é um menino-prodígio. Com quatro anos, fazia raízes cúbicas de cabeça, em vez de andar a jogar ao berlinde, e a mãe mostrava-as às visitas. Há aquela distorção e, mais tarde, não consegue comunicar com as pessoas, não consegue relacionarse com os colegas, tem um problema enorme com as mulheres.
- Sabemos logo como vai acabar o livro: Majorana apanhou um barco de Nápoles para Palermo em 1938 e desapareceu para sempre.
- Sim, sabemos o fim do livro. O que é engraçado é o que o terá levado a fazer uma coisa radical, e não tanto o que aconteceu. Foi um corte dramático com a realidade. Porquê? É uma história que tem muitas camadas. Há o nível humano, o nível de relacionamento com os colegas e há aquela história mirabolante de eles [os Rapazes da Via Panisperna, o famoso grupo liderado pelo físico Enrico Fermi em Roma, a que pertenceu Majorana] terem conseguido a fissão do urânio em 1934 sem dar por isso. É óbvio que Majorana, sendo o "Grande Inquisidor era a alcunha , que criticava toda a gente, descobria os erros dos outros, terá reparado no que aconteceu. Extrapolar daí até bombas atómicas é mais especulativo. Mas isto coincidiu com a altura em que ele se fechou no quarto. Houve uma crise qualquer, que teve muitos ingredientes.
- Majorana apercebeu-se das implicações éticas da fissão nuclear?
- Acho que sim. Quando desapareceu, deixou um buraco que afectou imenso as pessoas. Afectou a família, que nunca recuperou. Afectou a aluna pela qual se apaixonou, que se sente culpada. Afectou Fermi e as pessoas que fizeram parte do projecto Manhattan [mais tarde, para desenvolver a bomba atómica, nos EUA] em termos morais, sempre desagradável para eles que Majorana tivesse desaparecido. Do ponto de vista das implicações morais da ciência, todos devem ter sentido que Majorana estava, senão no céu, pelo menos dentro das suas cabeças a ver o que faziam. Tornouse um bocado a consciência da ciência. Enfim, há tantos elementos... como ainda a história do bebé queimado na família. Naquela altura, o que se fazia quando uma pessoa tinha um desentendimento com outra? Queimavase o bebé dessa pessoa. É uma mácula da família Majorana e que pôs pessoas na cadeia [um tio de Ettore Majorana e a mulher, que era irmã do pai do bebé]. É uma telenovela que demorou muito a deslindar. Deve ter sido algo que o desgastou. Uma pessoa que já era desequilibrada à partida, dava-se mal com os colegas, descobria o caminho para a bomba atómica e, ainda por cima, queimouse um bebé na família e andavam todos à estalada. É uma história de doidos, que se mistura com uma partícula doida, que é o neutrino, como se vê agora. Em termos narrativos, é perfeito. O que é pior: o neutrino ou o Majorana? Se calhar, os dois.
- Por coincidência, foi anunciado [a 23 de Setembro] que se mediram neutrinos a viajar mais depressa do que a luz. Dias depois publicou um artigo sobre isso. O que diz nele?
- Há explicações, mas são todas forçadas. Aquilo não devia estar a acontecer. Se o neutrino se portasse como deve ser, a velocidade que conseguíamos medir seria próxima da velocidade da luz, mas não igual ou superior. A energia [do neutrino] não é muito grande, a massa do neutrino é muito pequenina, mas o que é excepcional nesta experiência é que o movimento é muito grande. Há maneiras de jogar com a massa do neutrino e fazer com que se consiga ter um efeito [na velocidade] tão grande com energias tão pequenas. Para ser honesto, estas explicações não são assim grande espingarda.
- Se o neutrino for mesmo mais rápido do que a luz, quais são as implicações?
- Gravíssimas. A teoria da relatividade teria de estar errada e ser revista completamente. Na teoria da relatividade, se alguma partícula se move mais depressa do que a luz, então há as máquinas do tempo. Pode-se ir ao passado matar a avó antes de nascer e disparates desses, há paradoxos.
- Voltando à actual família de Majorana, foi falar com ela à Sicília e teve de aprender italiano. O que tive de aturar! [risos]
- Parece terse divertido.
- Divertime imenso. Todos falaram comigo, mas queriam que só falasse com um e não com os outros. Tive de gerir a confusão siciliana. Quando comecei o livro, o meu italiano era uma desgraça. Nem era português, nem italiano, era portaliano. A paciência que tiveram comigo... mas depois decidi aprender italiano. Estive quase dois anos e meio a fazer o livro. Fui falando com várias pessoas, inclusivamente com uma aluna por quem ele se apaixonou. Depois de ter estado quatro anos metido num quarto sem sair, de repente, dão-lhe uma cátedra em Nápoles e ele vai para lá ensinar. Tem cinco alunos, quatro são mulheres e uma delas fazia parar o trânsito, numa altura em que as mulheres não iam para a universidade. O desgraçado deve-se ter visto completamente às aranhas para explicar a mecânica quântica e o neutrino. [risos]
- Diz no livro que a chave mágica de uma pessoa está na infância. A mãe de Ettore era controladora, não o deixava brincar e na escola vivia reprimido. Isto explicará por que era atormentado?
- Claro. É muito triste fazer uma coisa dessas a uma criança. O irmão dele conheci os sobrinhos uma reacção contra isso e deixavaos fazer o que quisessem. Aquela casa é uma confusão segundo a mãe dos sobrinhos, que também conheci. Era uma família com um passado de sucesso. Há um braço político da família, com advogados, reitores. Há um braço científico, com engenheiros. E havia aquele peso enorme de precocidade, porque a maior parte deles conseguiam ser génios muito cedo. Deve ser horrível uma pessoa ser criada assim. Ter tido outra infância e ter encontrado uma mulher poderia ter resolvido o problema. Se tivesse tido uma infância mais normal teria ficado com algumas aptidões sociais. Talvez tivesse limado algumas arestas nos desentendimentos com os colegas. Não tinha de ser tão mauzinho quando descobria que estavam errados, teria tido mais cuidado com os sentimentos das outras pessoas. Por outro lado, a grande tragédia é que nunca encontrou amor. Isso tinha feito a diferença, principalmente se tivesse tido uma família.
- Nesta viagem ao mundo de Majorana fala da relação dele com Fermi, por quem, no livro, não parece ter simpatia. Majorana surge como alguém brilhante, que gosta de música, de teatro, enquanto Fermi surge como alguém que não sabia muito para lá de física e que, por vezes, nem via os resultados que obtinha, como a fissão do átomo.
- Acho que isso não é verdade. Não tinha nada contra o Fermi até escrever este livro. Pelo contrário, admirava Fermi imenso. Mas ao descrever Majorana, é impossível não tomar partido, porque houve ali um antagonismo tão grande entre os dois. As minhas simpatias vão para Majorana. Era mais equilibrado, apesar de toda a maluquice. Equilibrado, no sentido de uma cultura não científica. Fermi era obtuso nesse sentido, fechado, monolítico. Talvez a minha opinião em relação a Fermi pareça negativa de mais porque está justaposta com o conflito que teve Majorana. Houve ali uma divisão entre a cigarra e a formiga, entre o fazer ciência de forma idealista e de forma pragmática, entre os teóricos e os experimentalistas, entre o seguir a carneirada e ter a sua própria bússola e maneira de ver as coisas. Houve uma série de divisões que tornavam Majorana uma pessoa muito lateral, que dava saltos, enquanto Fermi era muito metódico e fazia as coisas de A para B, para C. Nesse contexto, parece que Majorana era esperto e Fermi burro, mas não é assim. As duas maneiras de fazer ciência são necessárias, só que naquele caso criava um conflito pessoal enorme.
- Também refere o prazer de Majorana ao descobrir uma coisa e, depois de lá chegar, pouco se importar com os louros.
- Essa é uma coisa inexplicável. Mesmo pessoas idealistas têm obsessão por publicar e ficar com os louros de uma descoberta. Majorana era exactamente o contrário: o que lhe dava gozo era o processo mental, era haver uma coisa que ninguém conseguia descobrir e ele chegava lá. Feita a descoberta, atirava-a para o lixo, não queria saber do resto.
- Como as descobertas nos maços de tabaco, que punha no lixo...
- Isso é de doidos. Há tanta coisa em documentos que provam que teve realmente a ideia, mas publicamente ninguém sabia de nada. Por causa disso, não estão associadas a ele.
- O trabalho mais conhecido dele é uma descrição [matemática] do neutrino, pouco depois de a existência desta partícula ter sido proposta em 1930 [só seria detectada nos anos 50].
- Porque se dignou a publicar aquilo. Mas dignou-se porquê? Porque queria sair do quarto ao fim de quatro anos. Concorreu a uma cátedra e teve de apresentar um artigo. Possivelmente, devia estar cheio de teias de aranha, numa gaveta. Quase de certeza que estava feito há quatro anos.
- Também fala de si próprio neste livro, como no anterior, Mais Rápido do que a Luz, em que conta que aos 11 anos o seu pai lhe ofereceu um livro de Einstein e Infeld [A Evolução da Física]. A seguir obrigou-o a comprarlhe um livro técnico sobre a teoria da relatividade, que não percebia, mas que o fez estudar matemática. A sua chave mágica para o interesse pela física está na adolescência?
- Os dois livros são muito diferentes, mas é natural que haja paralelos mentais e biográficos. Mas o facto de me ter metido dentro desta biografia de Majorana tem a ver com objectividade e subjectividade. Os jornalistas têm a mania de que são objectivos. Isso é tanga. Não há mal em uma pessoa meterse dentro da história jornalística. Isto é Hunter Thompson total. Chamase Gonzo journalism, que é o jornalismo em que o jornalista fala de si. Hunter Thompson meteu-se num gang de motas, o Hells Angels, e tornouse num deles, até que perceberam que escrevia sobre eles e lhe deram um enxerto de porrada.
Obviamente, há um paralelo entre aquilo que fiz e o Gonzo journalism. Uma das recensões ao livro diz que é Gonzo biography. Até mesmo na má criação, no ser ordinário há um paralelo com o jornalismo Gonzo. Um dos livros de Hunter Thompson, Fear and Loathing in Las Vegas, é giríssimo. A história é real: um jornal pedelhe para ir a uma conferência da polícia sobre droga em Las Vegas. Ele e um amigo chegam lá completamente drogados com alucinogénios. A linguagem é parecida com a que uso. Hunter Thompson é o génio que procuro seguir! [Risos] Mas só o li depois de escrever o outro livro e este.
- Em 1999, publicou o primeiro artigo sobre a teoria da velocidade variável da luz, depois de uma batalha. Em 2003, em Mais Rápido do que a Luz, relata essa batalha e critica os bastidores da ciência, nomeadamente a avaliação dos artigos por outros cientistas antes da publicação. Ainda tem dificuldade em publicar?
- Não. Mas este tipo de teorias nunca se tornou mainstream. Há um grupo de pessoas a trabalhar nelas, mas são ignoradas por razões não científicas. O que ainda é pior.
- Porque questionam Einstein?
- Acima de tudo, é isso. Ou talvez seja mais uma questão sociológica: é o instinto de carneiro. Pôr em causa Einstein é mais interessante, porque podemos aprender alguma coisa fundamental sobre a física.
- Foi por questionar Einstein que se tornou popular...
- ... No Alentejo? [risos]
- ... Fora da comunidade científica.
- Tudo começou com um artigo no jornal Times.
- É verdade, no Times ou no Sunday Times, logo que publiquei o artigo [científico].
- Depois houve um documentário no Channel 4, que lhe trouxe mais popularidade...
- ... O Ronaldo da física! [risos]
- Por que teve a ideia de que a velocidade da luz variou, o que contraria Einstein, e foi mais rápida no início do Universo?
- Inicialmente, a ideia era tentar explicar o Universo primordial. Por que era tão homogéneo? Normalmente, a temperatura tende a homogeneizar as coisas: juntos, um objecto quente e um frio ficam com a mesma temperatura. Põese um bocadinho de leite no café, mexese e fica homogéneo. Mas é preciso haver tempo e comunicação para as coisas se homogeneizarem. O Universo primordial era muito mais homogéneo do que permitiria o raio das interacções, se a velocidade da luz for de facto a velocidade máxima. Pareceume mais simples aumentar o limite da velocidade da luz no Universo primordial, o que explica muita coisa que a teoria da inflação [o Universo terseia expandido muito rapidamente no início], como alternativa, não explica. O efeito deste tipo de teorias [da velocidade variável da luz] é que, nos últimos mil milhões de anos, a variação [da velocidade da luz] já seria muito pequenina. Mas ao olharmos para os quasares [objectos astronómicos], estamos a vêlos precisamente como há mil milhões de anos. Seria uma maneira de medir a luz como ela era. No princípio, os quasares deram indicações de que a velocidade da luz podia ter sido diferente. Mas as experiências dos quasares estão cada vez mais ambíguas. Têm sido uma desilusão. O que tornava esta teoria melhor do que a inflação é que não só substituía e explicava o Universo primordial, como poderia ter verificação directa.
- Tem estes dois livros, mas gosta de escrever?
- Adoro escrever. Saime facilmente, mas em inglês. Escrever não ficção em inglês é fácil. Por outro lado, escrever ficção em inglês é impossível para mim.
- Escreve ficção em português?
- Já escrevi. Mas não sei se valerá alguma coisa.
- É um conto, um romance?...
- Prosa poética, um conto. É sobre a morte. A coisa mais parecida com isso que estou agora a fazer, e não é exactamente escrever ficção, é traduzir o livro do Rui Cardoso Martins E se Eu Gostasse Muito de Morrer?. Tem a ver com a taxa de suicídios no Alentejo, que é gigantesca. Por que é que os alentejanos fazem isto? Nem sequer são um povo muito triste. Gosto imenso do Alentejo e das pessoas. Aquela gente é desregulada da cabeça, mas de uma maneira original [risos], tem uma maneira única de sonhar, de disparatar. O livro do Rui [que é de Portalegre] capta bem isso. O personagem principal é o Cruzeta e é a história do último dia do Cruzeta e dos amigos dele. Tem a ver com o facto de haver ali um niilismo total na geração a seguir à revolução [de Abril]. É por isso que digo que as duas obras fundamentais sobre o Alentejo são Levantado do Chão e o livro do Rui. O livro de Saramago é uma coisa marxista, de luta de classes, que acaba em 75, a seguir à revolução. O livro do Rui retoma as coisas a partir daí. O Alentejo mudou radicalmente nessa altura. Não havia valores nenhuns, era a perda de confiança em relação ao futuro.
- Costuma falar muito do Alentejo, mas viveu lá pouco tempo [mudouse em criança para Lisboa].
- Vivi lá quatro anos, mas voltei regularmente. Sempre estive muito ligado a Évora. Em termos de raízes, sou alentejano.
- Por que escreveu sobre a morte?
- A certa altura todos temos um confronto com a morte. Às vezes, é uma vantagem saber que se pode morrer amanhã, especialmente se se for ateu como eu. Ter a perspectiva de que posso morrer amanhã dá sentido ao estarmos aqui e agora. As pessoas deixam de pensar de maneira mesquinha. Por outro lado, tem um efeito epicurista, que é divertir-se, beber bem, comer bem. A morte pode ter um efeito quase optimista, quase positivo, tornar a vida mais alegre.
- Não acredita muito na tese do suicídio de Majorana.
- A tese do suicídio é a mais óbvia, não quer dizer que seja a mais correcta. Há imensas questões: por que levou imenso dinheiro? Uma pessoa vai suicidar-se e leva dinheiro? Levava passaporte para quê? Para entrar no céu? Por outro lado, gostava imenso de teatro e de Pirandello. Os personagens de Pirandello estão sempre a criar confusão. Ele vai suicidar-se e pode ter querido criar confusão [à volta da sua morte], mas podem ter sido tantas coisas. Há um grande ponto de interrogação.
- A certa altura começamos a estabelecer um paralelismo entre Majorana, que era irreverente e não gostava de ir às aulas, e a sua história de vida. Por exemplo, foi expulso do Colégio Moderno no 10º ano, porque escreveu uma redacção sobre Maria Barroso [então directora].
- Escrevi uma redacção maravilhosa, ordinaríssima. Fiquei fora do ensino durante um ano e poucos meses e no fim fiz os exames. O facto de gostar de Majorana implica que há paralelos de comportamento, de maneira de pensar e biográficos. A afinidade entre duas pessoas deriva disso. Porque somos parecidos em alguns sentidos é que me senti atraído pela história dele.
- Estudou piano.
- Numa altura estive dividido entre a música e a ciência. Estava a fazer física [na Faculdade de Ciências de Lisboa] e música e as coisas tornaram-se cada vez mais sérias. Era impossível fazer as duas coisas ao mesmo tempo e acabei por decidir fazer ciência.
- Nunca mais tocou?
- Não! Quando se atinge um certo nível e se deixa de tocar é um descalabro.
- Fala em aproveitar a vida e nos seus livros há sempre referências a vinho e cerveja. Aliás, conta que foi num dia de ressaca que teve a ideia da teoria variável da luz.
- Não conseguia fazer tanta ciência, se não tivesse uma maneira de parar de fazer ciência regularmente. Escrevo os livros em férias, em períodos em que deixo de fazer ciência. É bom para desligar a parte científica do cérebro e, quando volto a ligá-la, está diferente.
- Como começou a aventura da tradução para inglês do livro de Rui Cardoso Martins?
- Foi numa aposta. Estava a dizer mal dos ingleses, que pensam que só a literatura inglesa é boa e não sabem nada do resto, e a dizer que as obras fundamentais sobre o Alentejo eram o Levantado do Chão e o livro do Rui. Disseram-me: Por que não traduzes tu? Traduzir Saramago nem pensar. Traduzir o livro do Rui para a [minha] segunda língua tem sido difícil, mas tenho a vantagem de compreender melhor o original. Por exemplo, como é que se traduz só me dás fezes? Só uma pessoa criada no Alentejo apanha o sentido [quer dizer preocupações]. No livro, um doutor João, de Lisboa, chega ao hospital distrital e aparece lá uma senhora a falar das fezes que tem. Pensa que ela tem um problema de intestinos.
- Diz gostar Portugal, mas...
- É impossível trabalhar aqui. Mas gosto imenso das pessoas, da cultura. Há classes sociais, mas há mobilidade. A classe operária inglesa acha que a sua imagem de marca é ser estúpida e tem orgulho nisso. Portugal é ao contrário, é a classe operária que tem graça. Os intelectuais não têm graça nenhuma, os políticos ainda menos, a gente de bem é uma desgraça. As pessoas trabalhadoras é que carregam a cultura portuguesa, é que têm o colorido todo.
- Na física, a que se dedica agora?
- Estou a trabalhar em gravidade quântica, na tentativa de trazer a gravidade para o mesmo nível das outras forças [da natureza], que são quânticas. A gravidade não gosta das incertezas quânticas. Também comecei a trabalhar num projecto da ESA [Agência Espacial Europeia]: um instrumento de alta precisão que vão pôr no espaço e vai ser usado numa experiência para ondas gravitacionais. Na paisagem gravitacional do sistema solar, há um vale que é a Terra e as coisas são atraídas para ela, e há um vale que é o Sol e as coisas são atraídas para o Sol. Entre os dois, existe um ponto intermédio, o cimo de uma colina. Se formos um bocadinho mais para um dos lados, as coisas caem para aí. Há um conjunto de teorias gravitacionais engraçadas, que prevêem que a gravidade seria diferente no cume da montanha e que haveria forças de maré anómalas. É uma maneira de descobrir novidades sobre a gravidade.
Fonte: www.sigarra.up.pt